Para começar, endereço uma saudação especial a todos
os organizadores e participantes deste simpósio – permitam-me que, à margem
da nomenclatura oficial, denomine assim este convénio, usando a palavra com que
na antiga Grécia se designavam as reuniões em que, saboreando em convívio (συμ-πόσιο = sim-poseo) umas
taças de vinho e conversando acerca dos temas de maior interesse, se
assinalavam os mais importantes momentos da vida.
1. Píndaro, nas Olímpicas, dedicou ao vencedor de uma prova de pugilato um poema que se inicia com a oferta de uma taça de vinho ao atleta vitorioso: “apraz-me brindar os atletas vitoriosos com o precioso néctar das musas e encher de alegria os heróis coroados em Delfos e em Olímpia”. Hesíodo celebra o efeito reparador do vinho sobre os músculos cansados. O vinho será também objecto de alusões recorrentes nos Idílios de Teócrito, que, antes de todos os outros, registou o famoso dito Οἶνος καὶ ἀλάθεα mais conhecido na versão latina “In vino veritas” ou, em língua portuguesa, “A verdade (está, isto é, revela-se) no vinho”.
Sabemos, no entanto, que não foram os gregos os
primeiros a conhecer os segredos – as virtudes e os malefícios – desta bebida. Encontramos
o seu rasto em sítios arqueológicos do Médio Oriente e designadamente no antigo
Egipto.
Os leitores da Bíblia sabem como, depois de salvar as espécies animais
da extinção, Noé descobriu as delícias do vinho, que, tal como entre os pagãos,
se bebia, em Israel, nos banquetes sacrificiais, e, no quotidiano, de acordo
com o inspirado salmista, alegrava o coração do homem. Por exceder o âmbito
desta breve introdução, abstenho-me de citar inúmeras outras passagens da Bíblia,
do Antigo e do Novo Testamento, em que se reconhecem as inegáveis qualidades do
vinho e o seu papel na vida social.
A vinha e o vinho no antigo Egipto |
Os romanos apreciaram o vinho e aperfeiçoaram os métodos
do cultivo da vinha, seleccionaram as castas, procederam à sua difusão nos
territórios conquistados e consagraram às técnicas de vinificação uma
literatura significativa. Ainda hoje se lêem com interesse as páginas dedicadas
à cultura da vinha e à produção da saborosa bebida escritas pelos grandes agrónomos
latinos Varrão, Columela, Catão e Paládio, aos quais temos de associar Plínio o
Velho.
No “De Re Rústica”, uma espécie de almanaque dos
trabalhos a realizar em cada um dos meses do ano, não sabemos que mais admirar,
se a precisão ou se a meticulosidade com que Catão trata da plantação e da
cultura da videira, do fabrico do vinho, e do seu melhoramento, das suas
variedades e até das quantidades a distribuir quotidianamente por cada
trabalhador.
Reconstituição de um lagar romano, segundo a descrição feita por Catão no II século a.
C., no De Rústica (em Mas de Toureles, Beaucaise) |
Chegado aos oitenta anos de vida, Varrão considerou
oportuno reunir a sua bagagem (neste caso, de experiência e de conhecimento),
antes de iniciar a última viagem: “Annus enim octogesimus adonet me ut sarcinas
conligam, antequam proficiscar e vita”. Recolheu o nome de mais de cinquenta
autores antigos que, em textos hoje na sua maioria perdidos, discretearam sobre
a matéria e mostrou-se conhecedor de muitos desses escritos, especialmente de
Catão. As referências ao vinho e à vinha abundam no primeiro dos três livros do
seu “Rerum Rusticarum de Agri Cultura”, mas a sua obra é incompleta e menos
sistemática. Nela se menciona já a existência na Hispânia de vinhas de pequeno
porte, rasteiras, a contrastar com as muitas vinhas de altura existentes na Itália.
Columela, nascido em Cádis, na actual Espanha, ocupou-se
também da vinha e do vinho nos livros III e IV e ainda em alguns parágrafos do
livro XII do seu “ De Agricultura”.
Plínio o Velho dedicou ao mesmo tema o XIV livro da
monumental obra enciclopédica a que chamou “Naturalis Historia”, onde recolheu
uma vasta informação enológica.
No século IV da nossa era, também Palladio, numa espécie
de agenda intitulada “De Agricultura”, tratou com pormenor dos vários trabalhos
agrícolas, a realizar ao longo do ano, entre os quais avultam os que se referem
à vinha e, é claro, ao vinho.
Natural seria que, tal como na antiga Grécia, os
poetas latinos proclamassem os louvores do vinho. De facto, Virgílio, no século
I a. C., seguindo as pegadas de Teócrito, nos seus poemas de temas bucólicos ou
pastoris, não olvida as delícias de um bom vinho.
A expansão da cultura da vinha no mundo romano foi
tal que fez baixar o preço do vinho na Itália, de modo que, por volta do ano de
92, o imperador Domiciano, ao que parece sem grande resultado, promulgou um édito
destinado a travar essa expansão nas províncias. Este édito viria a ser ab-rogado
pelo imperador Probo, que concedeu a todas as cidades do Império,
designadamente das Gálias, da Hispânia e da Britânia, o direito de plantar
vinhas.
Por influência
dos romanos, o vinho e, de seguida, a cultura da vinha chegaram ao noroeste
peninsular, cujos habitantes, segundo o testemunho de Estrabão, não produziam
vinho, uma vez que o clima não se considerava propício à sua cultura, e, quando
dele dispunham, raramente o bebiam e reservavam-no para as ocasiões festivas,
consumindo-o no termo dos grandes festins familiares. Não o produzindo, tinham
naturalmente de o importar das áreas meridionais da Península Ibérica. É bem
conhecido dos arqueólogos o movimento de importação por via marítima, promovida
no tempo da ocupação romana, em grandes cargas de ânforas, as conhecidas ânforas
vinárias. Os barcos regressavam carregados de minério, principalmente de ouro,
e entre os maiores consumidores de vinho, por razões óbvias, contar-se-iam em
primeiro lugar os operários das minas.
Plínio o Velho, na História Natural, refere-se
a uma variedade de videiras tintas, a “allobrigica”, que resistia às geadas e
se difundiu nos vales alpinos (isto é, na Retica). Regista igualmente uma outra
variedade, a “biturigiaca”, localizável na área da actual Bordeaux,
possivelmente o antepassado do grupo dos carmenet, de que fazem parte,
além dos cabernet e dos sauvignon, o petit verdot. Pela
sua fonética, esta designação desperta naturalmente a nossa atenção, sendo de
acrescentar que, durante muito tempo, em francês antigo e em gascão, foi
chamado bit-durs, isto é, vide dura, devido à sua dureza na
altura da poda. É que de etimologias semelhantes dependerá a designação do
nosso vinho verde.
2. Fizemos menção genérica das referências ao vinho e
à vinha nos textos do Antigo e do Novo Testamento. No tempo de Herodes, a vinha
aparece nalgumas moedas como emblema da Judeia, então sob o domínio romano. Jesus
é pelos seus detractores acusado de beber vinho e um dos seus mais estrondosos
milagres, por ocasião das bodas de Canã, tem por objecto o vinho. Numa passagem
do Evangelho segundo João, Jesus apresenta alegoricamente o seu pai como o
vinicultor, ele próprio como a cepa da vide e os seus discípulos como os
sarmentos, que frutificam graças à seiva que recebem da cepa. Na Última Ceia, o
pão e o vinho são promovidos à categoria de sinais efectivos ou sacramentos da
sua presença – o seu corpo e sangue – entre os seus discípulos, sempre
que o seu gesto de os partilhar se repetir.
A difusão da liturgia cristã através do mundo pressupõe
este pormenor da cultura material, que consiste na existência de vinho em
quantidades mínimas, requerendo a sua cultura, ou, em casos extremos, a importação.
A não existência de uma produção própria de vinho, ou a inexistência do hábito
de o consumir, em determinadas áreas geográficas e em precisos momento históricos,
designadamente nos primeiros séculos do cristianismo, fez com que se pusesse a
questão do recurso a outras bebidas, especialmente ao leite, como consta das
normativas produzidas pelas autoridades eclesiásticas e dos textos de alguns
concílios. Estes documentos são, ao mesmo tempo, um precioso testemunho da
continuação e até, em certos casos, da expansão da cultura da vinha, após a
queda do Império Romano.
O Papa S. Dâmaso (366-384), de ascendência
peninsular, quiçá de terras hoje portuguesas, e o primeiro sumo pontífice de
cuja família sabemos alguma coisa, pelo menos o nome dos pais, ao qual se devem
medidas de extraordinária influência nos rumos seguidos pelo cristianismo,
deixou-nos um importante escrito, os “Canones Apostolorum”, em que se proíbe a
oferta sobre o altar de mel, leite ou “sicera” (bebida feita com o sumo das tâmaras),
ou outras coisas, abrindo excepção apenas para o azeite, destinado à iluminação,
e para o incenso, além do pão e do vinho.
Em plena vigência da monarquia sueva, S. Martinho de
Dume (
579) refere-se ao vinho por diversas vezes. Na “Correctio
Rusticorum” proscreve o costume, que considera pagão, de deitar vinho sobre a
lenha posta a arder no fogão; nos “Capitula ex Orientalium Patrum” (ou “Concilio
Lucense”) estipula que no santuário não se deve oferecer senão pão, vinho e água;
mais à frente, refere-se ao comércio do vinho e dos alimentos, testemunho de
que a actividade vinícola continuava a desenvolver-se após a instalação dos
reinos bárbaros. E tanto que até era necessário recomendar que não se
trabalhasse nas vinhas aos domingos. Se os dois primeiros concílios regionais
realizados em Braga tiveram a égide de S. Martinho de Dume, posteriormente, em 675,
o III Concílio Bracarense renovava a prescrição de que na Eucaristia se oferecessem
o pão e o vinho mas não o leite.
Podemos recolher ainda o testemunho de S. Isidoro de
Sevilha (
¨636), que na “Regula
Monacorum” não proíbe o vinho em absoluto, embora louve os monges que preferem
abster-se de o beber ao longo de todo o ano e determine que durante a Quaresma
todos o evitem, mas entre as actividades em que os frades se ocupariam menciona
a “plantatio culturaque vinearum”. Dispensamo-nos de enumerar as passagens da Lex
Visigothorum (promulgada em 654) que se referem à vinha e ao seu fruto,
assim como as frequentes intervenções nos concílios da Igreja de Toledo
relativas à protecção das vinhas e à indemnização dos danos nelas causados
pelos animais.
.
.
3. Após a queda da monarquia visigótica, em 711, uma
grande parte da Península Ibérica, e nela a área mais propícia à cultura da
vinha, caiu sob o domínio muçulmano.
.Bebi vinho que derramava luz
enquanto a noite estendia
o seu manto de trevas
É bem conhecida a atitude radical da
cultura islâmica em relação ao vinho, mas também se não ignora a falta de rigor
em seguir à letra as prescrições relativas a esta matéria, em vários lugares, e
especialmente na Espanha muçulmana.
Segundo a tradição herdada dos gregos, também
os poetas andaluzes cantaram com enlevo as delícias do vinho, e os seus efeitos arrebatadores nas horas de sonho e de paixão, como, entre
outros, sucedeu com Almutâmide, natural de Beja, o mais
famoso entre os reis das taifas peninsulares, que exaltava o prazer de uma taça de vinho em versos tão requintados como estes, que já citei no livro História dos Municípios:
.Bebi vinho que derramava luz
enquanto a noite estendia
o seu manto de trevas
E estes versos não foram escritos por um autor qualquer, mas por alguém que, além de refinado literato, foi governador de Silves e ocupou o trono de Sevilha.
Nem as disposições publicadas em ocasiões de mais exacerbado puritanismo religioso, sob os Almorávidas (1061-1147) e os Almóadas (1146-1212) conseguiram erradicar um hábito bem arraigado entre os muçulmanos da Península Ibérica. As reiteradas proibições do vinho, os processos judiciais contra os prevaricadores, e medidas tão drásticas como as do emir al-Hakam I, que ordenou a demolição dos armazéns de vinho de Córdova, denunciam a persistência do amor ao vinho, e sabemos como o próprio ‘Abd al-Rahman III e o seu filho ‘Abd al-Malik al-Muzaffar eram incapazes de recusar uma boa taça de vinho!.
Advirta-se, aliás, que, se a religião islâmica vedava aos crentes o uso do vinho, as uvas produziam-se para serem consumidas como fruta fresca, ou, depois de secas, como passas, e vão citadas, entre as mais apreciadas, as de Faro, as de Idanha e as de Coimbra. O agrónomo Ibn Bassal é um exemplo do interesse que as técnicas do cultivo da vinha mereceram aos muçulmanos do Al-Andaluz, onde o vinho produzido na região de Málaga era um dos mais famosos.
Os mozárabes – cristãos sob domínio muçulmano – puderam
sempre cultivar as suas vinhas e fabricar o seu vinho, desde que o não fizessem
circular no mercado exterior às suas comunidades e pagassem os correspondentes
tributos. A deslocação para norte de populações cristãs, acentuada em momentos
de perseguição instigada pelo recrudescimento do fanatismo, terá contribuído
para a conquista de novos territórios para a vinha, em latitudes onde até aí a
sua cultura era impensável.
Apesar do clima de tolerância, a que fizemos referência,
compreende-se facilmente que, no período muçulmano, a cultura da vinha e a
produção de vinho não fossem tão longe quanto poderiam ter ido.
4. O avanço da reconquista e o repovoamento – ou
melhor, a reorganização administrativa – que se lhe seguiram contribuíram para
imprimir um novo dinamismo à cultura da vinha. Nos trabalhos de investigação
que dedicámos à história dos municípios nas suas origens, tivemos ocasião de
observar de que modo essa cultura andou associada ao estabelecimento de novas
comunidades e à consequente criação de vilas e aldeias, especialmente nos vales
do Douro e dos seus afluentes e, mais para sul, nos vales do Mondego e do seu
principal tributário, o rio Dão, com reflexos até no sistema tributário
aplicado ao mundo rural.
Desde o do Porto (1123), a vinha e/ou vinho, os
lagares e o tributo de lagarádiga são referências presentes na maior parte dos
forais portugueses, de qualquer paradigma e área geográfica, sendo que no de
Ferreira e Atalaia se encontra uma curiosa expressão, relativa à fabricação do
vinho: “Et de tinta accipiatis quantum tingat vestro vino et alia veniat ad
lagar”. A extensão e a função económica e social das normas relativas ao
relego, nestes forais e noutros documentos, mereceu-nos um estudo em separado. Pode ler-se o texto que publicamos sobre este assunto.
Encontram-se referências ao vinho e/ou às vinhas, e a
temas relacionados, em muitos outros documentos posteriores à reconquista do
território correspondente ao futuro Portugal, desde o século IX. Em 870, num
testamento a favor da recém-fundada igreja de S. Miguel de Negrelos, mencionam-se
“cubos et cupas”, que mais não seriam do que as caixas e os tonéis destinados a
arrecadar os cereais e os vinhos. No mesmo ano, na doação de Souselo ao
mosteiro de Pendurada, além dos “cubus et cupas”, são referidos os “vineales” e
ainda a “larea que iacet in cima de ipso vineale”. A referência aos “cubus” e às
“cupas” aparece de novo em 882, num documento relativo à fundação da igreja de
Lordosa, assim como, um pouco mais tarde, numa carta do Livro de Mumadona
relativa a S. Miguel de Paçô. Quedemo-nos pelo testamento de Souselas ao
mosteiro de Lorvão, em 937, com uma frase em que se mencionam em conjunto “cupos,
cupas, mensas, cibaria et vino, vineis, ortis”, etc..
Coube às instituições eclesiásticas, e especialmente
aos mosteiros, um papel importante na difusão da vinha e no consequente
incremento da produção vinária. A nova energia acarretada ao monaquismo pela
difusão da reforma beneditina está relacionada com a consolidação da
propriedade monástica e com a opção pela cultura da vinha como um dos seus valiosos
suportes. Situam-se nessa linha mosteiros como os de Sahagun e o de Santa Maria
de Moreruela – para citarmos apenas o exemplo de duas instituições com influência
no território português – cuja produção vinícola, muito para além de
corresponder às necessidades do uso litúrgico e do consumo interno da
comunidade, ia abastecer o mercado de alguns centros urbanos.
Na Europa ocidental, a expansão demográfica, a que se
assiste ao longo dos séculos XI a XIII, é acompanhada pelo crescente
arroteamento de novas terras, pela construção de moinhos e pela plantação de
vinhas. Na Península Ibérica, e concretamente, no ocidente peninsular, esses
fenómenos são ainda estimulados pelo ardor da reconquista e pela consequente
empresa de repovoamento, isto é, de fixação e de reorganização da população,
que naturalmente englobava as comunidades pré-existentes no terreno e as que,
mercê da reconquista ou da presúria, se foram instalando. Entre as figuras jurídicas
a que mais frequentemente se recorreu no processo de repovoamento contam-se os
contratos de plantação, cuja fórmula mais conhecida é aquela através da qual o
proprietário entregava uma terra ao cultivador para que este aí plantasse vinha
e/ou procedesse a outras culturas. Decorrido um tempo de carência (com
frequência, de cinco anos), os direitos sobre a terra ou, mais concretamente,
os seus rendimentos eram partilhados entre as duas partes outorgantes. São os
chamados contratos “ad populandum” ou “ad laborandum”, bem conhecidos pelos
medievalistas.
Limitar-nos-emos à análise de alguns dados recolhidos
em fundos documentais, relativos a instituições do Alto Minho, que chegaram até
aos nossos dias. Essa documentação revela um interesse pela cultura vinária que
se patenteia já no século XIII e se intensifica especialmente ao longo do
século XIII.
Em 1221, o Bispo de Tui Lucas de Pacientia “arrendou”
o casal do Alcouço, abaixo da igreja de Vilar de Mouros, com a condição de que
o foreiro construísse aí uma casa, a fizesse habitar pelo primeiro filho ou
filha que casasse, que o plantasse todo de vinha e colocasse outras árvores,
devendo pagar anualmente seis quarteiros de pão, um morabitino e metade do
vinho produzido.
Através do antigo Cartulário do mosteiro de Refojos
do Lima, conseguimos saber que entre os bens de Nuno Guilhufes (que viriam a
integrar o património do mosteiro) se conta um casal adquirido em 1118 em
Caldelas (f. Calheiros, c. de Ponte de Lima), do qual fazia parte uma vinha. O
interesse pela cultura da vinha mantinha-se no referido mosteiro, conforme o
testemunho de um contrato de 1220, através do qual o mosteiro aforava a João
Peres e respectiva esposa diversas leiras, na condição de que os enfiteutas aí plantassem
vinha, que devia estar pronta “et posita in lata”, no prazo de cinco anos, a
partir dos quais dariam ao mosteiro, em cada ano, metade do vinho. Num contrato
de escambo, lavrado em 1254, pelo mesmo mosteiro, menciona-se uma vinha como
referência para a demarcação de uma propriedade.
Em 915 a Correlhã, então designada como Villa
Corneliana, foi doada à igreja de Santiago de Compostela, por Ordondo II,
em substituição dos quinhentos soldos que seu pai, Afonso III, tinha deixado a
esta igreja no seu testamento. Na sequência da partilha das rendas entre a
Arcebispo e os capitulares, ficou sob alçada do Cabido compostelano. Em 1216, o
Cabido de Santiago de Compostela fez doação a Pedro Lourenço e Pedro Martins da
“sernara da Pedreira” com a condição de que “plantetis ea de vinea et claudatis
bene et excolatis prout vinea debet excoli”, com a obrigação de pagarem
anualmente a renda de um terço da colheita, uma fogaça, dois capões e “unum
storcum de vino”. Em 1234, já debelada uma contenda que opôs os moradores ao
Cabido, conta-se entre as terras dadas em prazo, por três vidas, a João
Crescones (aliás arcediago, “tenens vices decani”) uma herdade “cum vinea sua
et cum sua larea” e na renda a pagar entra o terço do vinho e ainda “unum
storcrum de vino”. No ano seguinte, o mestre Lourenço, organista, fazia um
contrato vitalício com João Crescones, relativo à herdade de Sá, na mesma
freguesia de Correlhã, sob a condição de que “plantem ibi vineas et arbores”,
ficando na obrigação de dar ao cabido a quarta parte dos rendimentos. Em todos
estes casos, o abandono da cultura da vinha, a dar-se, acarretaria como consequência
o retorno das herdades à posse do Cabido.
É já de 1363 um pergaminho que no elucida sobre a
existência de vinhas nas terras do mosteiro de S. Salvador da Torre.Tardia e escassa é também a documentação relativa ao
mosteiro de Vitorino das Donas em que se encontram algumas referências à economia
vinícola. Data de 1395 o desembargo de uma vinha, feito ao mosteiro por Clara
Anes e seu filho António Afonso. No tombo das propriedades, elaborado em 1383,
mencionam-se duas vinhas, localizadas no sítio das Barbosas, na freguesia da
sede do referido mosteiro.
Situado na área geográfica mais setentrional do nosso
país, o mosteiro de Fiães deixou-nos no seu velho cartulário o melhor
testemunho de uma acção persistente orientada para o incremento da cultura da
vinha, num aro cronológico que abarca os séculos XII a XIV. Como todos os seus
congéneres, o Tombo de Fiães, datável, no fundamental, do século XIII, recolhe
os mais antigos documentos relativos ao património do mosteiro, num total de 412,
cujo espectro cronológico vai do ano de 989 até ao de 1365, sendo maioria os
que datam do século XII (cerca de um quinto) e do século XIII (mais de dois terços).
Referem-se a actos de natureza económica, como doações, permutas, compras,
vendas, arrendamentos e aforamentos de propriedades. Os pagamentos, a liquidação
das rendas e dos foros e até dos custos notariais são, em grande parte, feitos
em géneros, que também se mencionam ao descrever ou caracterizar as
propriedades rurais. Por todas essas razões, o cartulário reveste-se de uma
singular importância para o estudo da história económica da época. Ora, em mais
de seis dezenas (acima de 15% do total) dos documentos, encontram-se referências
ao vinho, às adegas, às vinhas ou a realidades afins. Na sua maioria, tais
documentos foram elaborados entre 1183 e 1247, caindo fora dessa cronologia
apenas um documento de 989 (datação duvidosa) e um outro de 1352.
A implantação geográfica do cenóbio, cuja fundação é anterior
ao início da nacionalidade e, por conseguinte, ao definitivo estabelecimento da
fronteira, explica o facto de que muitos desses documentos digam respeito a
herdades localizadas em terras da Galiza. Ainda em 1218, Teresa Vermudes fez
doação ao mosteiro das vinhas que possuía em Ribadávia, acto que vale a pena
citar, por um lado, porque as relações com Ribadávia estão presentes, desde o
início, na história do concelho de Melgaço e, por outro, porque Ribadávia se
tornou famosa pela produção, nível e comércio dos seus vinhos.
Para além do testemunho genérico, já de si valioso, sobre a cultura vinícola e o seu papel na economia regional, as referências ao vinho contidas na maior parte dos citados documentos são pouco expressivas. Há no entanto um núcleo desses documentos que testemunha a persistência de uma actividade orientada para o plantio de novas vinhas, especialmente no segundo quartel do século XIII. O mosteiro interessa-se pela aquisição de propriedade valorizadas com a existência de vinhas; empraza herdades onde há vinhas plantadas e mesmo em exploração, e sobretudo incentiva os agricultores a procederem a novas plantações, impondo-lhes essa obrigação nos contratos de aforamento: em toda ou em parte da herdade, o agricultor era obrigado a pôr vinha, que devia iniciar a produção de vinho num determinado prazo (3, 4 ou, mais em geral, 5 anos) e só após o decurso desse tempo começava a pagar a renda correspondente, mas, se tal não acontecesse, a herdade era-lhe retirada pelo mosteiro. A essas condições obedeceu o aforamento de um casal em Deva, duas herdades na Retorta, várias herdades na Aveleira, uma em Chancim e uma leira no casal de Formarigo. Em síntese, é bem clara, através dos exemplos citados, a preocupação manifestada pelos abades de Fiães de incentivar os agricultores a promover a mais valia das terras, em benefício deles próprios e do mosteiro, com inegáveis reflexos na economia local.
5.
As Inquirições levadas a cabo por ordem de D. Afonso III, não obstante a
sua índole parcelar – estenderam-se com efeito às terras reguengas e não a toda
a propriedade – fornecem uma razoável panorâmica da extensão ocupada pela
cultura da vinha no Alto Minho (e não só), à data da sua realização (1258).
Estamos certos de que o cultivo da vinha não seria objecto de atenção menor nas
terras não reguengas, especialmente nas que pertenciam às famílias nobres e às
entidades eclesiásticas, como os exemplos acima apresentados satisfatoriamente
comprovam. E uma vez que tínhamos chegado ao mosteiro de Fiães, das suas
redondezas partiremos, descendo as margens do rio Minho e subindo as do Lima,
num périplo destinado a observar de relance o que se passava nos territórios
correspondentes aos actuais concelhos.
Pelo que respeita ao actual concelho de Melgaço, ao
que já sabemos, as Inquirições acrescentam apenas que em Tagilde (então
do julgado de Valadares) alguém fizera uma vinha numa herdade reguenga, de que
então andavam sonegados ao Rei os seus direitos.
No julgado de Pena da Rainha, anexado posteriormente
ao concelho de Monção, actualmente conhecido pelos seus vinhos de alta qualidade,
entre os quais se evidenciam os alvarinhos, casais distribuídos por várias
freguesias – seis em Trute, cinco em Pias, três em Cambeses, um em Lara e outro
na Portela – dão ao Rei metade do vinho colhido; alguns – um em Trute, outro e
dois reguengos mais pequenos em Pias – dão apenas a quarta parte da colheita.
No julgado de Froião, integrado posteriormente ao
concelho de Valença, possui el-Rei uma vinha na vila de Valença, enquanto, em S.
João da Silva, a igreja, um casal e duas outras herdades pagavam uma quarta do
vinho, precisando-se em relação a uma determinada herdade que a renda era de um
almude.
As Inquirições não fornecem qualquer dado em relação à
existência de vinhas no território dos actuais concelhos de Vila Nova de
Cerveira e de Caminha (citamos já, entre as herdades não reguengas, um casal de
Vilar de Mouros).
Na metade norte do hodierno concelho de Viana (então
parte integrante da Terra de S. Martinho, sob a jurisdição de Ponte de Lima) há
sete referências à existência de vinhas na Meadela, registando-se até que um
tal João Gonçalves – hipoteticamente identificável como pároco de Vinha e “povoador”
de Viana – aí “chantou vina et devesa”; nas bouças da Serpe davam ao Rei, em
cada ano, um almude de vinho. Mais além, na freguesia de Perre, nada menos do
que cinco casais pagavam a quarta do vinho.
Nas freguesias que, desde o século XIX, constituem a metade sul do concelho de Viana, pertencentes no século XIII ao julgado de Neiva, não se mencionam vinhas. Ainda que pareça estranho, diga-se o mesmo do julgado de Geraz. Apenas em Deucriste, então do julgado de Neiva (apesar da sua localização relativamente excêntrica) se anota a existência de uma leira de vinha.
Nas freguesias que, desde o século XIX, constituem a metade sul do concelho de Viana, pertencentes no século XIII ao julgado de Neiva, não se mencionam vinhas. Ainda que pareça estranho, diga-se o mesmo do julgado de Geraz. Apenas em Deucriste, então do julgado de Neiva (apesar da sua localização relativamente excêntrica) se anota a existência de uma leira de vinha.
Analisemos
o mapa da produção vinícola do concelho de Ponte de Lima, no século XIII. As cinquenta e uma
freguesias que actualmente o constituem repartiam-se por várias unidades
administrativas: na sua maioria, as que se localizavam a norte do rio Lima, as
primeiras a serem submetidas à jurisdição do município, pertenciam à chamada
Terra de S. Martinho, desmembrada quando, em 1258, se fundou o concelho de
Viana. A actividade vinícola era uma constante na maioria dessas paróquias. Até
na vila, sede do concelho, existia pelo menos uma vinha. Casais a pagar rendas
em vinho encontram-se por todo o lado: Sá (2), Santa Comba (2), Bárrio (então S.
Miguel da Labruja, 4), Cepões (2 e 5 quintãs), Refojos (1); outras herdades
produziam e pagavam vinho em Fontão, Estorãos, Arcozelo, Brandara, Calheiros e
S. Julião de Nogueira (anexada a Refojos). Faltam-nos referências expressas ao
vinho ou vinha na inquirição relativa à freguesia de Moreira de Lima.
Deparamos com os primeiros testemunhos de um efectivo
comércio de vinho, a nível regional: em Fontão, onde há vinhas reguengas, “os
homees da Marinha que veem comparar vino” pagam de tributo um almude por cada
carga ou por cada “cupa”: a Marinha corresponde às terras do litoral, onde o
clima não era propício à cultura da vinha. Na inquirição de Estorãos regista-se
igualmente que “quantos veerem da Marina por comparar vino in esta collatione
dam al Rey senos almudes de vino; et se uno deles comparar una cuppa da I
almude de vino”. O facto de apenas em Fontão e em Estorãos se aludir à saída de
vinho para a Marinha, não exclui a participação dos habitantes de outras
freguesias neste comércio, uma vez que as duas freguesias serão referidas por
se localizaram nos limites do concelho, onde normalmente eram cobradas as portagens
e demais tributos que oneravam os produtos transportados pelos cidadãos
provenientes de fora do concelho. A inquirição de Fontão refere-se, aliás,
expressamente aos “omes da Marina que (…) passarem pelo arco [isto é, pela
ponte] de Rio Podre”, lugar onde seriam normalmente liquidados esses tributos.
A sul do Lima, as freguesias actualmente pertencentes
ao concelho distribuíam-se, na segunda metade do século XIII, por diversas
jurisdições. No concelho de S. Estêvão (da Facha), onde a propriedade rural
atingira uma acentuada fragmentação, regista-se a existência de um casal e de
numerosas outras herdades obrigadas a prestações de vinho, que, no seu
conjunto, rendiam, em cada ano, 12 moios, e há um topónimo expressivo: o
Outeiro de Vinhas. Encontramos uma referência elucidativa do modo como se
procedia ao escoamento dos géneros agrícolas resultantes dos tributos e rendas
pagos pelos agricultores: há certas famílias que “sum foreiros do pam et do
vino, quando lis elRey deitar a terra”, isto é, os géneros eram recolhidos por
agentes locais, pertencente a famílias pré-estabelecidas, que recolhiam as
prestações e, em geral, pagavam um quantia fixa ao cofre régio, normalmente em
dinheiro.
No julgado de Souto e Rebordões, nota-se igualmente
uma adiantada fragmentação da propriedade e uma intensa actividade agrícola. Alguns
casais de Santa Maria de Rebordões e outras herdades contribuíam com prestações
de vinho, na maior parte dos casos, um quarto, mas, nalgumas situações, um
quinto; e panorama idêntico era o de S. Salvador de Souto, onde o inquiridor
acrescentou: “se elRei quiser deitar estas herdades aos foreiros deverão dar 150
moios entre pão e vinho”, isto é, cerca de metade em cada um destes géneros, o
correspondente a cerca de 75 moios de vinho. Como o vinho necessitava de
recipientes para ser armazenado e bebido, os habitantes de Souto, terra
abundante em castanheiros, como reflecte o próprio topónimo, e com um
artesanato relacionado, davam, em conjunto, 20 concas e cinco outros vasos.
Uma área significativa do sudeste do concelho de
Ponte de Lima – Fornelos, Queijada, Sinde (Anais), Fojo Lobal, S. Estêvão de
Riba de Neiva (Vilar das Almas), Sandiães, Calvelo, Gaifar, Cabaços, S. Martinho
da Gândara, Gemieira, S. João da Ribeira, Arca, Lavradas, Gondufe, Serdedelo (S.ª
Marta e S. João), Beiral e Boalhosa – pertencia ao julgado de Penela, e apenas
as inquirições de um reduzido número dessas freguesias (Gândara, Gemieira,
Ribeira, Gondufe e Beiral), todas situadas no vale do Lima, fornecem
testemunhos da cultura da vinha, mesmo assim razoavelmente avaros.
Das cinco freguesias que integravam o pequeno julgado
de Aguiar (de Neiva), já referido, pertencem duas actualmente ao concelho de
Ponte de Lima: Friastelas, onde uma leira paga um alqueire de vinho, e Freixo (então
Paçô), com uma herdade que contribuía com um quarteiro de vinho mole, à saída
do lagar.
No julgado da Nóbrega (Agnofrica na grafia da época),
de que é herdeiro o actual concelho de Ponte da Barca, a cultura da vinha é atestada
nas freguesia de Oleiros, que se destacava com quatro casais, uma granja e uma
leira a pagarem foros de vinho, e ainda nas de Paço Vedro, Sampriz, S. Tomé do
Vade, Cuide Vila Verde, S. Pedro do Vade, Covas, Vila Chã e Lindoso. Faltam
informações sobre as freguesias dependentes da jurisdição dos mosteiros (Bravães,
Crasto e Vila Nova de Muía), onde a cultura da vinha não devia merecer menos
interesse do que nas outras freguesias do julgado.
Também no julgado de Valdevez a cultura da vinha se
estendia pelas encostas voltadas para o sol, em muitas freguesias: Vilafonche,
Giela, Rio Frio, Prozelo, Aboim das Choças, Paçô, S. Paio, Rodalho (Cendufe),
Senharei, Távora (S. Vicente e Santa Maria), Padreiro, Souto, S.ª Cristina, S. Paio
e S.ª Maria (Madalena) de Jolda. Em Padreiro, onde em cada ano davam quarenta
moios de vinho, mencionam-se diversas vinhas e até campos de “vinhas velhas” que
foram cortadas, mas teriam de ser replantadas no prazo de cinco anos. As
freguesias com mais herdades produtoras de vinho eram as mais próximas da actual
sede do concelho: Giela, com dezassete casais reguengos, Guilhafonche, com doze
casais e outras dez herdades, e S. Paio, com quatro casais e meio. Mas noutras áreas
do concelho, a qualidade dos terrenos e a exposição solar favoreciam a cultura
da vinha: S.ª Maria de Távora, com oito casais, S. Vicente de Távora, com
quatro, Rodalho (Cendufe), com seis, S. Paio de Jolda, também com seis, S.ª Maria
(Madalena) de Jolda, com quatro, e S. Pedro do Souto, com três.
Concluindo:
Longo foi o percurso que trouxe a vinha até às
encostas soalheiras do Alto Minho. Com os romanos, os habitantes do noroeste
aprofundaram o seu gosto pelo vinho e, ao aprender com eles a arte de cultivar
a terra, plantaram as primeiras cepas de vide. Abençoado o vinho pelo
cristianismo, que o adoptou no mais importante acto da sua liturgia, a cultura
da vinha manteve-se e desenvolveu-se, para além das invasões bárbaras, nas
vertentes rudes mas fecundas, ao lado dos vales iluminados pelo esplendor do
sol e protegidos dos ventos marinhos. Foi necessário encontrar as cepas e as
castas adequadas ao clima e ao paladar dos consumidores.
A aversão do islamismo oficial e a fuga dos cristãos
perseguidos terá contribuído para uma maior extensão da cultura da vinha mais
para o norte. Os mosteiros, especialmente os que abraçaram a reforma
beneditina, difundiram e intensificaram a vinicultura, nas granjas directamente
dependentes da casa-mãe e nos casais dados em arrendamento ou aforados a
cultivadores livres. O exemplo dos mosteiros foi repetido pelos bispos e pelos
cabidos diocesanos e pelas administrações senhoriais, o Rei incluído, que
encontraram no vinho não só uma bebida agradável e um energético reconfortante
mas também um meio de extrair maior rendimento das propriedades.
No século XIII, a vinha cobria quase todas as áreas
propícias à sua cultura no Alto Minho. As Inquirições levadas a cabo por ordem
de D. Afonso III ajudam-nos a verificar que os vinhedos tinham alastrado a um
grande conjunto freguesias, voltadas para os rios Minho e Lima.
O vinho consumia-se localmente e fornecia energias
para o trabalho, mas era também objecto de um comércio significativo, ao ponto
de interessar o próprio fisco. Sê-lo-ia o que era recolhido nos lagares pelos
mordomos régios, que naturalmente o encaminhavam para, ao abrigo dos privilégios
do relego, ser vendido, antes de qualquer outro, nos centros urbanos. Mas
também os particulares faziam dele um dos pilares das suas economias domésticas,
um dos poucos meios disponíveis para a obtenção de moeda, através da sua venda
para áreas menos propícias à cultura da vinha, como eram as do litoral, ou, no
dizer das Inquirições, as da marinha.