A ponte sobre o rio Lima
Entre a lenda e a história: uma ponte romana
Derrotados os galaicos, nos confins da Lusitânia, e atravessado o rio Douro, o cônsul Décimo Júnio Bruto, com os seus homens, atingiu, no ano de 137 A. C., as margens do Lima. Através dos escritores romanos chegou até nós a fama das superstições que pairavam sobre este o rio, identificando-o com o mítico rio que bordejava a entrada dos infernos, o Letes, cujas águas as almas ou sombras dos que morriam eram compelidas a beber, para deixarem todo o seu passado envolvido nas brumas do esquecimento.
Essa identificação encontra-se pela primeira vez na Geografia de Estrabão: «(...) Lethes quem alii Limaeam alii Belionem appelant», isto é: o Letes que uns chama Lima e outros Belion1. O próprio Estrabão se faz eco de uma tradição que terá reforçado esta crença: «tendo empreendido uma campanha com os Túrdulos, os célticos das margens do Guadiana, passado o rio Lima desertaram e, como a seguir ocorresse a morte do seu chefe, permaneceram aí dispersos, o que levou a que a este rio se chamasse Letes»2.
Os soldados comandados por Décimo Júnio Bruto, governador da Hispania Ulterior, chegados às margens do Lima, receavam a travessia, com medo de nunca mais conseguirem regressar aos seus lares3. Foi então que Décimo Júnio Bruto arrancou o lábaro das mãos ao porta-estandarte e avançou para a outra margem, de onde começou a chamar os militares, cada um pelo seu nome, para os incitar a segui-lo, mostrando-lhes que ainda se mantinha viva a sua memória.
Nesse momento se lança neste rio a ponte que estabelece a ligação entre a lenda e a história da nossa região. Pode afirmar-se que o Alto Minho entrou na órbita do mundo romano a partir desta campanha, tanto mais que ela não foi além do rio Minho.
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Aduelas com a típica bossagem romana visíveis durante as obras de recuperação em 1961
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Definitivamente submetido o noroeste peninsular com as campanhas de Augusto, teve início a organização administrativa do território e a sua exploração económica, para a qual era importante o sistema de estradas que passaria a ligar os centros mais importantes entre si e com a cidade de Roma.
A mais importante via que percorria a faixa oeste do território peninsular atravessava o nosso rio no local onde iria nascer a povoação a que a ponte então construída deu o nome: Ponte de Lima.
A arquitectura romana recorreu a uma inovação técnica de grande importância, com múltiplas aplicações nos mais diversos tipos de construções: o arco. Não foram os romanos que o inventaram, pois antes deles foi utilizado no oriente. No entanto, os etruscos adoptaram e aperfeiçoaram o sistema de construção sobre arcos (e abóbadas), que permitia a criação de enormes vãos e, por conseguinte, a construção de edifícios com espaços amplos, de aquedutos e de pontes bem seguras. Os romanos herdaram dos etruscos e desenvolveram esta como outras técnicas e difundiram-na por todo o mundo a que estenderam o seu domínio.
Construída a ponte romana sobre o Lima no século I da nossa era, apenas um trecho chegou aos nossos dias. Situa-se na margem da direita, a norte da igreja de Santo António da Torre Velha e mantém cinco arcos da fábrica original, tendencialmente de volta perfeita, com aduelas de bossagem rústica e orifícios destinados aos fórfices ou tenazes, visíveis em muitos dos silhares, com que se prendiam e elevavam as pedras no acto da sua colocação. São posteriores os dois arcos mais pequenos que ligam a obra romana à ponte medieval, e o trecho correspondente será já da época desta última.
Sofreu reconstruções e reparações no correr dos tempos. De tais reconstruções resultou o aspecto que oferecia em 1908, segundo a descrição do Dr. Félix Alves Pereira4: os arcos apresentavam-se mais largos ou salientes do que as paredes laterais, excedendo a largura da ponte entre 0,5 a 0,7 m. para cada lado5, dando a ideia de uma execução atabalhoada. Já nessa altura o pavimento não era horizontal, elevando-se para o meio, com a disposição que se costuma designar como em albardão ou cavalete.
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Ponte segundo uma fotografia do século XIX
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Em
1961 este trecho da ponte foi desmontado e reconstruído, trabalho
acompanhado pelo Coronel Alberto de Sousa Machado e descrito numa
comunicação apresentada no I Colóquio Portuense de Arqueologia6. As obras
então executadas, além de restituírem à ponte a feição primitiva, no
que se refere ao alinhamento das paredes com as extremidades dos arcos,
ajudaram a confirmar as observações de Félix Alves Pereira, sobre a
origem dos sete arcos, verificando-se que apenas cinco mantinham as
características romanas, designadamente a volta perfeita (que num deles
se aproxima do elíptico), sendo os outros medievais, como denota a
diferença do aparelho e a existência de siglas em vários blocos. É
diferente o número de aduelas, bem como o tamanho dos arcos, que vão
crescendo em diâmetro e, consequentemente, em altura, a partir do lado
norte, isto é do lado de Além da Ponte. Por essa razão o tabuleiro se
elevava em cavalete, embora o Coronel Sousa Machado tenha concluído, a
partir das suas observações, que na origem devia ser horizontal. |
Ponte de Lima - a ponte medieval
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A ponte medieval
Devido à ruína da maior parte desta obra, possivelmente acompanhada de algum desvio do leito do rio, construiu-se, na Idade Média, uma nova ponte, aquela que ainda hoje cavalga o rio entre a igreja de Santo António da Torre Velha e a vila de Ponte de Lima. Alguns dos seus arcos foram ocultados com o arranjo do Largo de Camões, desde as últimas décadas do século XIX até cerca de 1930.
A ponte medieval foi construída a continuar o trecho que resta da ponte romana e possivelmente sobre os fundamentos de uma boa parte dessa obra caída em ruínas.
Não se conhece qualquer documento que directamente nos esclareça com precisão acerca da data exacta em que se iniciaram as obras e do autor ou autores da iniciativa. Coube, sem dúvida, um papel decisivo ao Rei e ao concelho de Ponte de Lima. O estilo arquitectónico leva-nos a pensar no primeiro quartel do século XIV, data em que no país já se falava a linguagem do gótico.
Um documento de D. Dinis refere-se às obras da ponte. Não conhecemos o paradeiro da carta original, que será o mesmo de todo o arquivo do Marquês de Ponte de Lima. Miguel de Lemos, que teve a sorte de a ler, identificou-a como o pergaminho n.º 54 do maço VI do arquivo do Marquês, transcrevendo-a na sua maior parte7. No entanto dispomos felizmente da cópia registada num dos livros da Chancelaria de D. Dinis, que de seguida transcrevemos:
«Don Denis pela graça de deos Rey de Portugal e do Algarve a quantos esta carta virem faço saber que eu dou e outorgo a foro pera todo sempre a Martim Femandiz çapateiro de Ponte de Limha e a sa molher Maria Perez e a todos seus sucessores hūa casa que hé da mha obra de ponte de Limha a qual casa jaz antre outra que é da dita ponte de Limha da hūa parte e como parte com a casa que foy de Pero da Cava que morava na dia villa e que está junta com a dita ponte com sas entradas e com sas saídas e com todos seus direitos per tal preyto e so tal condiçom que eles façam en essa casa quanta benffeitoria poderem em tal fazer e den ende ao que ouver por mim de ter a obra dessa ponte pera proffeitamento da dita ponte, cinquo libras e cinquo soldos en cada um ano a hūa terça por natal e a outra por páscoa e a outra por dia de San Johane Babtista. E eles non devem vender nem penhorar nem dar nem doar nem cambhar nem em outra maneira alhēar a dita cassa a cavaleiro nem a dona nem a escudeiro nem a religioso nem a ordim nem a clerigo nem a outro homem poderoso senom aa tal pessõa que seia da sa condiçom dos ditos Martim Fernandiz e sa molher que bem e compridamente den esses dinheiros en como dito he aos que por mim e por todos meus sucessores que por nos tiverem essa obra dessa ponte. En testemuynho dei ao dito Martim Fernandiz e a sa molher esta carta. Dante em Lixboa XI dias da gosto el Rei o mandou per Pero Perez seu clerigo Airas Fernandiz a fez. Era Mª CCCª LIIII anos»8.
Dito em linguagem actual, o Rei afora ao sapateiro Martim Fernandes, sua mulher e herdeiros, uma casa, que eles não poderão alienar a não ser em favor de pessoa que como eles pague o foro anual estabelecido pelo documento: cinco libras e cinco soldos, destinados a benfeitorias na mesma ponte, isto é, à sua manutenção. Essa casa parte com duas outras, ambas contíguas à ponte: uma de Pero da Cava e outra «da dita ponte de Limha». Esta era “da obra da ponte de Limha», o que faz supor que esteve relacionada com a sua construção, e o facto de já se não considerar necessária, permitindo o seu aforamento, leva a supor que as obras, se não estavam totalmente concluídas, se encontravam muito próximas do seu termo. Estamos em 11 de Agosto do ano de 1316 (era de 1354).
A decisão de construir ou reconstruir a ponte deve ter amadurecido no ânimo do rei D. Dinis, quando, no início do reinado, visitou Ponte de Lima, onde, em 11 de Julho de 1280, assinou um documento a proibir o casteleiro e o porteiro de Monção de cobrar anúduva aos moradores de Correlhã e de outras localidades9. Desde essa data até à conclusão das obras da ponte decorreram trinta e seis anos.
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Ponte com o arranque dos arcos a descoberto. A ponte deveria aparecer mais alta, mas o assoreamento do rio impedirá que isso se veja. Sob este primeiro arco (aliás, duas vezes reconstruído), há um pavimento claramente visível na fotografia seguinte, de 1961. Seria talvez uma acesso ao antigo cais.
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Com
os seus 5,7 metros de largura, incluídas as guardas, o tabuleiro da velha ponte limiana, ao longo de 308 metros9b, apoia-se em dezassete arcos ogivais, dois actualmente soterrados, com os pilares defendidos do ímpeto das
águas, a montante, por fortes talhamares de secção triangular, a que do
lado oposto correspondem contrafortes de planta rectangular, sobre os
quais se abrem os estreitos arcos ou olhais de descarga.
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Pavimento
sob arco da ponte. Fotografia de 1961 (como outras desta data, da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais) |
Na época da sua edificação e durante muitos anos, era a mais importante obra do género existente em Portugal. A sua grandiosidade devia então parecer maior porque o assoreamento não teria ainda coberto em grande parte os seus pilares e se manteria visível pelo menos outro tanto da sua altura observável no presente ao longo do ano.
No extremo norte da ponte medieval existia uma torre, cuja base ainda hoje é possível descortinar, junto à igreja de Santo António da Torre Velha, a proteger a entrada de quem viesse do norte. Por ser a mais antiga das que passariam a constituir o sistema defensivo da povoação chamou-se Torre Velha, nome que ainda subsiste na designação do templo vizinho.
A sua localização, entre o que restava da velha ponte romana e a ponte medieval, assim como o facto de a torre construída na margem esquerda estar integrada na muralha, fez com que a Torre Velha se considerasse situada no meio da ponte. Nesse sentido é de se entender a referência do Livro das Correições citado por Miguel Roque dos Reis Lemos, nos seus Apontamentos10. O corregedor da comarca de Viana, em que se integrava Ponte de Lima, em visita de correição à nossa vila, ordenava, em capítulo especial, em Dezembro de 1746, que a Câmara mandasse tapar a pedra e cal a porta do torreão do meio da ponte, sob pena de 6000 rs.
A construção da torre do lado da vila, inserida nas muralhas, integrar-se-á na campanha de edificação da nova cerca, levada a cabo no reinado de D. Pedro I. As obras iniciaram-se em 1359, como consta de uma sentença da época e da inscrição gravada numa lápide incrustada nesta torre, na qual, de um dos lados e por baixo do escudo das armas portuguesas de dezasseis castelos, existia a epígrafe seguinte:
REINÃT: O MVI: NOBRE: REY: DOM: PEDRO: NA: ERA: DE: MIL: ET
CCC: LXXXX: VII: ANOS: MANDOV: RENOVAR: ESTA: VILA: E
FAZER: ESTAS: TORRES: PER: ALVAR: PAES: SEU: COREGEDOR:
E: COMEÇARON: A BOTAR: A: PEDRA: VIII: DIAS: DE: MARÇO
E: COMEÇAROM: A: AOS: III: DIAS: DE: JULHO
O próprio Rei visitou as obras, quando estacionou na vila, em Agosto de 1360, e em Junho e Julho de 136311.
Após o desmantelamento da torre, a inscrição foi colocada no parapeito da ponte e, na sequência do arranjo do Largo de Camões, percorreu vários locais, estando agora junto à Torre de Santo António da Torre Velha12.
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Ponte sobre o rio Lima - desenho livre de um autor anónimo, na capa de um manuscrito com estatutos de uma confraria, finais do século XVIII
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Concluídas as obras, a ponte medieval ficou com uma torre em cada um dos extremos, ainda que a simetria não fosse perfeita, uma vez que uma das torres se erguia sobre ela (a Torre Velha) enquanto a outra se ergueria ao lado (a Torre dos Grilos). A imagem da ponte com uma torre em cada um dos extremos irá perdurar na memória visual dos transeuntes e reflectir-se na heráldica do município.
Duas esculturas, representando anjos turiferários, encontravam-se embutidas nas paredes da Torre Velha, possivelmente a ladear alguma escultura religiosa. Uma leitura iconográfica inepta influenciou Miguel de Lemos, levando-o a ver nestas estátuas a representação de duas legendárias figuras locais do século XIV: os irmãos Estêvão e Lourenço Rodrigues Malheiro.
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Os anjos da ponte
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Durante séculos não houve em Portugal outra ponte que se lhe comparasse. Os forasteiros, mesmos os que procediam de outros países, ficavam impressionados com a sua imponência. Jacobo Sobieski, pai de João Sobieski, futuro rei da Polónia, que a atravessou em 1611, escreveria acerca da nossa ponte que «não se encontrará na cristandade outra de igual obra, beleza e magnificência»13.
O pavimento foi repetidas vezes reformado. A uma das mais antigas remodelações se refere a inscrição, gravada numa lápide, agora incompleta, alusiva aos trabalhos executados por ordem de D. Manuel I:
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Inscrição da ponte
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A leitura é a seguinte:
Nosso s.r elrey dõ manue [l man]
dou calçar e
amear esta [ponte]
e torre assi como
sta co [me]
çouse a vi de junho de
m [......]
e acabouse
no ano de [n.
sr. de]
m e bvi diego de ponte e d. aº
(Nosso Senhor ElRei Dom Manuel mandou calçar e amear esta ponte e torre assi como sta. Começou-se a 6 de Junho de... e acabou-se no ano de Nosso Senhor de MbVI. Diego de Ponte e Diego Afonso...)
Estas obras estariam concluídas, por conseguinte, no ano de 1506 (=Mbvi).
Como a inscrição elucida, D. Manuel mandou também colocar ameias ao longo da ponte, prolongando assim o efeito decorativo do remate das muralhas e torres que protegiam a vila. As ameias, nesta época, não tinham mais do que uma função ornamental.
O aspecto visual completar-se-ia com a colocação de uma cruz flordelisada, com as armas concelhias, no meio da ponte, onde ainda hoje a vemos. Já existiria no início, mas a primeira referência que lhe encontramos é do primeiro quartel do século XVII14. A ponte e o cruzeiro constituem o motivo heráldico basilar da heráldica de Ponte de Lima.
Será desejável que algum dia se faça uma prospecção arqueológica que, entre outros aspectos, permita ver até onde chegam as fundações desta obra e, designadamente, se, por baixo da água e das areias, ainda existem as bases da ponte romana sobre as quais assentará, segundo se presume, a bela construção medieval que chegou até aos nossos dias.
Obras de conservação e restauro
Atravessada por uma multidão de veículos com rodados de aros de ferro, por animais ferrados e pessoas, muitas vezes de tamancos ferrados, a ponte sofreria, com efeito, os danos causados pelo desgaste quotidiano. Para além dos embates das cheias, também os acontecimentos políticos fizeram estragos, levando a que alguns trechos fossem momentaneamente destruídos.
O financiamento das obras de limpeza e conservação da ponte era suportado pelas rendas dos bens da ponte, pelo recurso aos fundos da Câmara e por taxas cobradas aos veículos que a atravessavam.
Havia um conjunto de bens cujas rendas se destinavam a suportar os encargos com a conservação e a execução das mais frequentes e simples reparações. Esses bens proviriam de um dote inicial e de algumas dádivas ou legados. Na Idade Média considerava-se uma obra de beneficência a construção e a manutenção das pontes, havendo diversos testamentos que contemplam essa actividade, que está na base até de algumas tradições legendárias, como a de S. Gonçalo. Quando em 1430 a Câmara de Ponte de Lima obteve do Rei a autorização para os emprazar, esses bens consistiam em metade do Casal do Rego do Azar, na freguesia de Santa Comba, constituído pelo campo da Geraza, o campo da Cancela e a Bouça Velha das Regadas15. Sobre os encargos correspondentes, esclarecem-nos as condições que em 1753 a Câmara impôs aos enfiteutas para autorizar a venda de tais bens à Congregação do Oratório, de Braga: pagamento de um quantitativo em moeda, limpeza das silvas e outras ervas, dos bueiros e esgotos e asseio do pavimento. Obrigações que Miguel de Lemos, em face da documentação, observa terem-se cumprido, mais ou fielmente, até ao seu tempo16. Com o andar dos tempos e as inovações introduzidas pela legislação, este prazo teve o destino de todos os outros, a acabar na sua extinção definitiva.
Em 1577 foi nomeado um inspector que tinha a seu cargo a gestão das rendas da ponte e do imposto dos carros17.
Em 9 de Maio de 1727, a Câmara obtinha uma provisão a autorizar o lançamento de uma finta de 3.500.000 rs., distribuída pelas Câmaras da Província, para financiar as despesas com a reparação da ponte, cabendo ao nosso concelho a quantia de 68.800 rs.18.
Se em 1 de Julho de 1767 se tornou livre a passagem dos canastrões de sardinha que meses antes tinham sido taxados em 200 rs. cada19, menos de vinte anos depois o tributo é de novo instaurado para os canastrões de sardinha de maior peso, isto é, para os que atravessassem a ponte com duas juntas de bois20.
As obras de que a ponte beneficiou com mais frequência foram as de reparação ou substituição do pavimento, desgastado sobretudo pela contínua passagem de carros de bois e de cavalos.
Ficou já registada a pavimentação da ponte no reinado de D. Manuel I. Um relance pelos Livros das Vereações leva-nos a concluir que, em média, cada trinta anos a ponte necessitava de uma substituição do ladrilho.
Da incúria do homens também a ponte receberia danos. Em 1603, por acórdão de 19 de Maio, uma postura estabelecia penalidades a aplicar aos revendedores de carvão e a todos os outros que lançassem terra ou entulho debaixo da ponte21. Ainda no século XVII, um arco arruinado necessitou de reparação22, e caíra mesmo um pilar23.
Por vezes foram as enchentes do rio as responsáveis pelos estragos: em 5 de Junho de 1747 foi arrematado o conserto da ponte, danificada por uma cheia24. A
finta de 3.500.000 rs lançada em 1727 em toda a Província
justificava-se com a necessidade de fazer uma profunda reparação da
ponte, altamente arruinada25. E foram as enchentes e, por vezes, o carácter irrequieto dos homens que derribaram as ameias, de cuja recolha, porque se achavam caídas e dispersas, a Câmara, na sessão de 22 de Julho de 1758, encarregou o Procurador do Concelho26. Outro acórdão, em 12 de Agosto de 1780, ordenava o conserto da ponte arruinada pela cheia27. No século XX deixaram memória diversas enchentes, em que o rio chegou a níveis que raramente atinge. A de 1909 pôs em causa a possibilidade da minha existência... porque o meu avô materno, então no serviço militar, para vir passar a época do Natal com a família, atravessou a pé o tabuleiro da ponte, coberto por águas tumultuosas!
Quem se detiver a observar a ponte medieval aperceber-se-á de que o ritmo dos tímpanos e arcaturas se interrompe com a falta de um dos arquinhos ou olhais de descarga, a seguir ao primeiro arco, a contar da igreja de Santo António. A explicação desta falha tem-se atribuído a uma reconstrução apressada após alguma demolição intencional de um trecho da ponte, com o fim de impedir a passagem dos inimigos, por ocasião da Guerra Peninsular. No dia 6 de Abril de 1809, duas divisões, compostas por 4000 soldados do exército de Soult, comandadas pelos generais Heudelet e Lorges, procedentes de Barcelos, cercaram e tomaram Ponte de Lima. Debalde o General José António Botelho, comandante das tropas portuguesas de Entre Minho e Lima, que prontamente acorreu de Arcos de Valdevez, com 600 homens da infantaria e 2 peças de artilharia, tentou impedir os franceses de atravessarem o Lima, num combate que se prolongou até às duas da tarde do dia seguinte28. Sob o fogo que se cruzava entre os dois lados, os nossos militares entregaram-se corajosamente à tarefa de cortar a ponte medieval entre os dois arcos, para impedir ou dificultar a passagem dos franceses e assim proteger a sua própria retirada.
Também a agitação civil se reflectiu na ponte: numa incursão feita na vila, em 1 de Fevereiro de 1826, os miguelistas destruíram a ponte em dois arcos, de cuja reparação se ocupou a câmara na sessão de 21 de Julho de 182729.
Finalmente, a alteração das mentalidades e das concepções urbanísticas, assim como as novas necessidades no domínio dos transportes, acabariam por afectar as estruturas relacionadas com a ponte. O processo de que viria a resultar o actual Largo de Camões iniciou-se em 11 de Maio de 1836, com a decisão de lançar duas rampas da ponte para areal, uma do lado sul e outra do norte, junto à capela da Senhora do Rosário30.
A Câmara depois de adquirir a um particular os direitos que ele, por escritura de aforamento, detinha sobre a mesma, decidiu proceder à demolição da Torre dos Grilos, em 27 de Agosto de 1857, destinando a pedra à reforma do pavimento da ponte e a outras obras31. À Irmandade de Santo António da Torre Velha, que sobre ela tinha posse desde tempos remotos, foi comprada a vizinha torre, em Junho de 1862, para fazer à respectiva demolição, nesse ano concluída32.
As siglas
Muitos dos silhares com que foi marcada a ponte medieval estão marcados com siglas.
Diversos autores escreveram sobre estes sinais gravados nos silhares das construções medievais, dando-lhes interpretações variadas. Para Raczinski, tratar-se-ia de uma linguagem simbólica e secreta utilizada pela franco-maçonaria33. Possidónio da Silva ocupou-se a demonstrar que as siglas nada têm a ver com os ritos maçónicos, considerando a multiplicidade de tais sinais num mesmo monumento e a presumida ausência de semelhança entre os sinais de construções da mesma época34.
Na esteira de Possidónio da Silva, e perfilhando o ponto de vista de vários estudiosos, segundo os quais as siglas serviam para a avaliação do trabalho feito, tendo em vista a respectiva remuneração, e eventualmente para indicar a posição em que as pedras deviam ser colocadas na parede, Rocha Peixoto estabeleceu o paralelismo com as siglas utilizadas pelos pescadores da Póvoa de Varzim, para marcar os seus barcos, tal como o faziam outros pescadores, artesãos, pastores e agricultores das mais diversas épocas e lugares, desde o longínquo tempo dos canteiros de Knossos e Rodes35. Reconhecendo, com Raczinski, a existência de semelhanças entre as siglas de diferentes monumentos, para ele “esta identidade não significa, de modo algum, que se trate de sinais combinados entre membros de uma mesma corporação” mas tem como causa “a limitação gráfica dos iletrados e o paralelismo das suas faculdades artísticas, ainda mesmo que se trate de povos de vária estirpe». E, depois de observar que «os sinais de configuração e complicação ornamental mais intricada são sempre raros», cingindo-se às siglas da ponte limiana, que obteve através de um familiar, acrescenta que «tais marcas são: letras maiúsculas e minúsculas; algumas incompletas e até tão imperfeitas que lembram certos caracteres que os analfabetos tentam por cópia; outras, mal traçadas, como é frequente ver-se na escrita popular; certas invertidas, excluindo mesmo as que podem ser vistas em posição indevida; algumas, então, floreadas como os SS, na factura das quais é fácil vê-los comprazerem-se as pessoas quase incultas. Há ainda os algarismos – e sabe-se que muitos artífices só escrevem os dez sinais da numeração árabe. Temos, por fim, os traços paralelos, os ângulos, os triângulos, os rectângulos, as cruzes, as ingénuas combinações, como em toda a arte popular, das linhas rectas, curvas e mistas».
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Algumas siglas da ponte
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Recentemente, Carlos Alberto Ferreira de Almeida voltou a interessar-se pelas siglas da ponte limiana, procedendo ao seu levantamento sistemático. Embora o acidente que o vitimou nos tenha privado do estudo que se esperava sobre essa matéria, na sua dissertação de doutoramento, que também não chegou a ser impressa, adiantou as primeira conclusões dessa investigação36. Depois de alertar para a possível existência de simples marcas de «posição», isto é, destinadas a facilitar a correcta colocação das pedras no local para que foram talhadas, observa que «as siglas de canteiro, embora se possam descobrir, excepcionalmente, em alguns monumentos clássicos, são sobretudo um fenómeno da Idade Média final». As siglas, ao contrário do que sucede com as igrejas, «são sobretudo abundantes em edifícios civis e militares dos séculos XIV-XV», pela simples razão de «as siglas se destinarem, primacialmente, à contabilidade do trabalho executado». Embora «a partir dos meados do século XIII, o hábito de siglar atinja todo o operário-canteiro que pode proceder assim por gosto e tradição – temos de convir que onde os pedreiros recebem pelo trabalho dia ou onde operassem gratuitamente as marcas eram dispensáveis. Já o não eram onde os canteiros recebessem o seu salário ao fim da semana ou dos quinze dias e conforme o trabalho realizado, como parece ser a prática normal de então».
De acordo com o saudoso historiador, «ao longo dos três séculos finais da Idade Média, as siglas evoluíram muito nas suas formas e características». Com efeito, «se bem que os sinais simples se encontrem sempre, mesmo ao lado de outros muito elaborados» verifica-se que «a tendência geral foi para o seu desenho se complicar e tomar cada vez mais a forma alfabética ou ideográfica (há canteiros que apresentam como sigla a figuração do objecto que o seu apelido nomeia)». Siglas semelhantes que se distinguem apenas por ligeiras diferenças poderão indiciar o parentesco dos canteiros ou simplesmente a semelhança do seus apelidos. Deve-se atentar ainda no facto de que certas siglas podem parecer diferentes sem na verdade o serem, em virtude de as pedras se encontrarem em diferentes posições (por vezes até com a sigla oculta).
De qualquer modo, as siglas são as marcas pessoais com que os pedreiros anónimos que trabalharam na ponte assinalaram a sua participação nesta imponente obra.
Viajantes ilustres
A ponte teve uma importância primordial nas ligações entre o extremo noroeste e o resto do nosso país, assim como nas relações entre Portugal e a Galiza, uma vez que era o único local onde, em qualquer época do ano, se podia fazer facilmente a travessia do rio Lima. Para além da indiscutível função económica, foi também lugar de comunicação religiosa e cultural, designadamente como lugar de passagem, quase único na Idade Média, dos peregrinos que, das paragens meridionais se punham a caminho de Santiago de Compostela.
Antes da ponte dionisina, aqui tinham passado D. Henrique e D. Teresa, assim como D. Afonso Henriques, os fundadores da nacionalidade, e ainda D. Sancho I
Quando. em 1186, se apoderou de Tui e depois, em 1197, voltou a cercar e dominar esta e outras localidades, D. Sancho I teve de atravessar o rio em Ponte de Lima.
A caminho de Santiago de Compostela por aqui transitou D. Sancho II, no ano de 1244.
D. Dinis, como já referimos, atravessaria o Lima no início do seu reinado, na nossa vila assinando, em 11 de Julho de 1280, um documento em que confirmava a isenção do pagamento de anúduva aos moradores da Correlhã, por esta freguesia pertencerá à Igreja de Santiago de Compostela.
Após a morte de D. Dinis, Ponte de Lima olhou com embevecimento a Rainha Santa Isabel que se dirigia, com as suas damas de honor, em peregrinação a Santiago, cheia de dádivas para o santuário: os seus atavios de rainha, incluindo a coroa marchetada de pedras preciosas, uma cavalgadura com os arreios de ouro, prata e pedrarias, vasos e paramentos sagrados, ricos tecidos com as armas de Portugal e de Aragão, sua terra natal. De regresso, traria uma bolsa e um bordão, com que viria a ser sepultava e se encontrariam no seu túmulo, quando o reabriram, em 161237.
A D. Pedro I já fizemos referência e de toda a gente é conhecido o episódio da tomada da vila por D. João I, narrado na Crónica de Fernão Lopes. A esse propósito refere o cronista que a vila «tem hūa gramde e fermosa ponte, comprida e espaçosa, de muitos piares»38.
Em 1502, D. Manuel I, o Venturoso, atravessava a ponte limiana, no regresso da peregrinação a Santiago, onde deixou a arder perpetuamente uma lâmpada votiva alimentada com azeite pago pelo almoxarifado de Ponte de Lima39.
Em 1549, atravessariam a mesma ponte o infante D. Luís e Francisco de Holanda, recém-chegado da Itália, segundo o testemunho deste último no livro Do Tirar polo Natural40.
Entre os viajantes ilustres que no passado a atravessaram a caminho de Santiago de Compostela, em viagens de que nos deixaram relatos, contam-se Leão de Rosmithal, Nicolás de Popplau, Jerónimo Mūnzer, Erich Lassota de Steblau e Jacobo Sobieski.
O barão Leão de Rozmithal partiu da Boémia numa viagem através das cortes europeias, na qual incluiu uma ida a Compostela. A caminho de Santiago, vindo de Braga, atravessou o rio em Ponte de Lima e daí seguiu para Valença e Tui, em direcção ao túmulo do Apóstolo41.
Nicolás de Popplau, um polaco germanizado, nascido em Breslau, fez a sua viagem no estio de 1484. Após a visita a Santiago, onde esteve a 21 de Julho, o nobre da Silésia dirigiu-se para Lisboa, fazendo por terra o percurso até ao Porto e continuando por mar a partir desta cidade. No seu caderno de viagem anotou os lugares onde ia passando, entre eles Ponte de Lima a cinco milhas (légoas) de Valença e outras tantas de Barcelos42.
Jerónimo Mϋnzer, médico da cidade de Nurenberga, para fugir à peste que se declarara na sua cidade, empreendeu com vário amigos uma grande viagem através da Europa, em cuja parte final se incluiu Santiago. Procedente de Barcelos, chegou, em 10 de Dezembro de 1494, a Ponte de Lima, seguindo, no dia seguinte, para Valença43.
Erich Lassota de Steblau, oriundo da Silésia, de língua alemã, esteve ao serviço de Filipe II de Espanha, nas campanhas militares que conduziram à anexação de Portugal. Em Janeiro de 1581, como outros companheiros, empreendeu uma viagem a Santiago. Saiu de Braga e deixando para trás a vila de Prado e a Portela das Cabras, no dia 20 de Janeiro passou em Ponte de Lima, referida na crónica da viagem como «vila grande e amuralhada», seguindo para Rubiães e Valença44. No regresso, procedente de Valença, passou novamente na ponte sobre o Lima, em 31 de Janeiro, seguindo por Moure até Braga.
Segundo um hábito comum entre a nobreza do seu país, Jacobo Sobieski, pai do futuro rei da Polónia João III, dedicou seis anos da sua juventude a uma viagem através da Europa, para completar a sua formação. Baseando-se nos breves apontamentos que tomou, redigiria, vinte e nove anos mais tarde, uma memória das suas andanças, em língua polaca. Quando, em 1611, chegou a Ponte de Lima, já tinha passado em Santiago de Compostela. Entusiasmado com a nossa ponte, fez um comentário que, apesar de parcialmente já citado, é indispensável transcrever: «Ponte de Lima, a cinco milhas de Valença, tem uma ponte de pedra bastante larga e comprida e de tão grande formosura que, no meu parecer, não se encontrará outra na cristandade de igual obra, beleza e magnificência»45.
Conteúdos publicados:
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A construção da ponte medieval de Ponte
de Lima, em O Anunciador das Feiras
Novas, Ponte de Lima, Associação Empresarial, 2000, ano XVII, II série, n.º
17, p. 81-83.
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A ponte de Ponte de Lima, em Vale do Lima – um rio, dois países, Valima e Adril (Ponte de Lima),
2001, p. 65-66.
António Matos Reis